sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

"Sobressaltos"






talvez ele soubesse até bem de mais

o que havia lá por baixo

e nunca mais o quisesse ver.

e assim mais não fazia

que pôr-se ali de pé bem alto acima da terra

a olhar através do vidro nublado

para o céu sem nuvens.

a luz fraca e fixa do céu

como nenhuma outra luz de que ele se lembrasse

dos dias e das noites

em que dia dava em noite

e noite dava em dia.

então esta luz exterior

quando a luz que ele tinha se apagou

tornou-se na única luz que tinha

até que por sua vez se apagou

e deixou-o na escuridão.(...)


Samuel Beckett

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010





queria rasgar as feridas

ou

desfazê-las no peito...




Há uma terra a leste do coração,

meu amor,

para lá dos mundos naufragados,

à esquerda da esperança....

não tem nome nem mapa nem rota,

é uma terra de vento e luz,

onde deus está por inventar,

e o demo não desembarcou ainda...

é uma pulsante ilha no meu peito,

escuta-a,

amor,

a terra onde poisarás a fronte,

e onde uma noite apenas

dura todo o sempre.


João de Mancelos - terra incógnita

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Quero escrever o borrão vermelho do sangue





Quero escrever o borrão vermelho de sangue

com as gotas e coágulos pingando de dentro para dentro.

quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez.

que não me entendam pouco-se-me-dá.

nada tenho a perder.

jogo tudo na violência que sempre me povoou,

o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu,

por falso respeito humano, não dei.

mas aqui vai o meu berro

me rasgando as profundas entranhas

de onde brota o estertor ambicionado.

quero abarcar o mundo com o terremoto causado pelo grito.

o clímax de minha vida será a morte.




clarice lispector

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010





A incerteza é um tiro no escuro

que nos acerta no lado esquerdo do peito...

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010




Ainda receio prender-te com o fio do meu sopro,
Atar-te com os estandartes azuis do sonho,
Às entradas nebulosas do meu castelo sinistro
Pôr tochas a arder, para me encontrares…

Ainda receio tirar-te ao halo dos dias,
Aos dourados pendores do rio solar do tempo,
Quando na pavorosa face da lua
Espuma prateado o meu coração.

Levanta os olhos e não me olhes!
Descem os estandartes, apagaram-se as tochas.
E a lua segue a sua órbita.
È tempo de vires tomar conta de mim, loucura sagrada!

Ingeborg Bachmann

terça-feira, 5 de janeiro de 2010




Transformo-me em fios de luz de manhã
quando acordo em ti
inundada pelo nosso calor…
Viajo nas tuas metamorfoses
enquanto espero que nasça em ti o meu sorriso…
Toco reflexos de lua no teu corpo
enquanto te contorces num doce despertar…
e com mil sentidos secretos despertas a minha alma
para um futuro colorido…
E porque somos
duas e uma quantas vezes…
tu és onde a minha lua se enche,
onde acabo de nascer…

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010





escrevo-te a sentir tudo isto...

repara

nada mais possuo

a não ser este recado

que hoje segue manchado de finos bagos de romã

repara

como o coração de papel amareleceu

no esquecimento de te amar



Al Berto

domingo, 3 de janeiro de 2010

Lírica de Pardilhó




Então acordo e sinto a meu lado


o esplendor tranquilo


da amada que respira


adormecida deitada sobre o flanco


vertendo a prata dum sorriso




nas ravinas da noite


esferas cantam a alegria


é um sítio de grama rociada




e passam horas


durante as que da rua


ouvindo vozes turvas


eu ficarei teimando


na claridade a todo o preço


de que me falam aves






Fernando Assis Pacheco ( A musa irregular )




Talvez seja uma concha


no interior do vento


É amarelada e surda


com uma orla vermelha


É mais lenta que o vento


mais densa


como uma nuvem de pedra


ou a pálpebra de um monte


Talvez se abra como uma túnica


talvez ascenda em aspiral


ou se erga num arco branco


talvez a felicidade de uma frase nua


a transforme numa rosa


e essa rosa seja a terra inteira.



António Ramos Rosa - Lâmpadas com alguns insectos